Em todo o mundo dito ocidental,
onde predomine certa liberdade religiosa, e com maior ênfase neste país chamado
Brasil, existe o arraigado hábito, em
todas as camadas da sociedade, de recitação solene e em bom som da popularíssima
ou hiperpopular expressão GRAÇAS A DEUS.
Desde as pessoas mais simples no
sentido de graduação instrucional e de possessão de bens, passando por
abastados, milionários, intelectuais, até políticos, congressistas,
governadores, presidentes de república, artistas, atletas, apresentadores de
televisão, ladrões, assassinos etc., todos
eles mantêm a postos ou em alerta, ou "em guarda", ou sempre prontíssimo
para uso, o chavão "GRAÇAS A DEUS".
E pouco importam os motivos ou
pouco se atina para os motivos, pois o que se faz essencial ou visceral ou
vital, quase como o quase imperceptível ato de respirar o poluído oxigênio que
ainda existe na atmosfera, é ter invariavelmente na ponta da língua o solene,
cerimonioso e místico "GRAÇAS A DEUS".
E "Graças a Deus" daqui,
"Graças a Deus dali", "Graças a Deus" d'acolá, "Graças
a Deus" por isso, "Graças a Deus" por aquilo, numa série
infindável e sempre crescente de razões ou aparentes razões para o
imprescindível "Graças a Deus", que não apenas integra uma espécie de
cultura do povo, mas funciona também como um mantra, algo que imperativamente
se deve pronunciar com vistas à obtenção ou à manutenção de uma certa proteção
divina.
A chuva caiu: "GRAÇAS A
DEUS"; o
sol surgiu: "GRAÇAS
A DEUS; consegui
um emprego: "GRAÇAS
A DEUS"; meu
chefe ou superior foi demitido: "GRAÇAS A DEUS"; minha mulher está grávida: "GRAÇAS A
DEUS"; ganhei
na loteria: "GRAÇAS
A DEUS"; comprei
uma casa:
"GRAÇAS A DEUS"; meu time foi campeão: "GRAÇAS A DEUS"; meu desafeto
morreu: "GRAÇAS
A DEUS"; passei
no vestibular: "GRAÇAS
A DEUS"; escapei
da polícia: "GRAÇAS
A DEUS"; pratiquei
um latrocínio "da hora"
ontem: "GRAÇAS
A DEUS"; passei
a perna num otário: "GRAÇAS A DEUS"; terroristas mataram trezentas
pessoas numa só explosão e mutilaram quarenta e cinco outras: "GRAÇAS A
DEUS"...
Existem também aquelas pessoas que,
talvez mais tímidas ou pouco à vontade ou algo símile, igualmente não abrem mão
dessa quase-mágica expressão, mas fazem-no de um modo mais peculiar, mais
fluido e mais cômodo, como "GRAZADEUS":
A sexta-feira
chegou: "GRAZADEUS";
vou
encher a cara no fim de semana: "GRAZADEUS"; a maconha vai
ser liberada no Brasil: "GRAZADEUS"; consegui um atestado médico para
faltar ao trabalho por três dias: "GRAZADEUS"; arranjei um
emprego onde trabalho pouco e ganho muito: "GRAZADEUS"; não consigo
chegar no trabalho na hora certa, mas "GRAZADEUS" tenho um
colega que aciona o cartão de ponto pra mim; uma mão lava a outra:
"GRAZADEUS"...
E o tempo prossegue em seu
inexorável ritmo, e o mundo avança, e as catástrofes se avolumam, e as crises
se agravam, e as tragédias pessoais se sucedem, e as famílias se implodem, e o
sentido da vida se esvai, e a própria vida se exaure, tudo isso respingado,
permeado e trazendo em si pendurados os milhões, talvez bilhões, talvez
trilhões, de incessantes, inevitáveis, automatizados, robotizados e
ininterruptos brados ora de GRAÇAS A DEUS, ora de "GRAÇAS A DEUS" e
freqüentemente de "GRAZADEUS".
E
encerra-se este texto, GRAÇAS À FINITUDE DE TODAS AS COISAS CIRCUNSCRITAS À
TEMPORALIDADE FÍSICA DO SER HUMANO.
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