Com este desembaraço, fluem as palavras de João
Calvino (‘Institutas’, vol. II,
págs. 97, 98, 99)
“Com efeito, quando, ofendido e como que
fatigado por nossa obstinação inquebrantada, isto é, removida sua
Palavra, na qual costuma exibir algo de sua presença, o Senhor nos deixa por um
pouco, e empreende a experiência do que
tenhamos de fazer enquanto ele está ausente, daí
se conclui erroneamente haver certos poderes de livre-arbítrio que Deus
contempla e testa, quando não o faz para outro fim senão
forçar-nos a reconhecer nossa nulidade.
Com efeito, um tanto mais
forte é esta segunda objeção: que a Escritura, com freqüência, afirma que nós,
de nós mesmos, adoramos a Deus, preservamos a justiça, obedecemos à lei, somos
zelosos em boas obras. Uma vez que estas são funções próprias da mente e
da vontade, como conviria atribuir estas coisas ao Espírito e, ao mesmo tempo,
nos serem atribuídas, a não ser que houvesse certa conjunção de nosso esforço
com o poder divino? Dessas
futilidades nos desvencilhamos sem qualquer dificuldade, se ponderamos
apropriadamente a maneira em que o Espírito do Senhor opera nos santos. É
improcedente aquela comparação com que odientamente nos rotulam, pois quem carece
de entendimento a tal ponto que creia que o
impulso de um homem nada difere do arremesso de uma pedra? Na verdade, de nossa doutrina não se
deduz nada que seja semelhante. Entre as faculdades naturais do homem nos
reportamos ao aprovar, ao rejeitar; ao querer, ao não querer; ao esforçar-se
por, ao resistir a; isto é, aprovar o que é fátuo, rejeitar o que é
essencialmente bom; querer o mal, não querer o bem; fazer esforços em relação à
iniqüidade, resistir à retidão. Que faz aqui o Senhor? Se quer utilizar-se de
depravação desta natureza como instrumento de sua ira, a dirige e a dispõe como
bem lhe aprouver, para que execute sua boa obra através de mão ímpia.
Portanto, o homem celerado
que, enquanto diligencia por obedecer apenas à sua concupiscência, assim serve
ao poder de Deus, porventura o compararemos com uma pedra que, acionada por
impulso alheio, não é impelida nem por motilidade, nem por sensibilidade, nem
por vontade própria? Vemos, pois, a grande diferença que existe!
Por essa razão, diz
Agostinho: “Dir-me-ás: Portanto, não agimos, sofremos ação. Pelo contrário,
ages e sofres ação, e então ages bem, se do bom estás a sofrer a ação. O
Espírito de Deus que age sobre ti é ajudador dos que agem. O designativo
ajudador prescreve que também tu ages em certa medida.” No primeiro membro
dessa alternância inculca ele que a ação do homem não é suprimida pela atuação
do Espírito Santo, por isso que a vontade, que é regida para que aspire ao bem,
lhe é da própria natureza.”
“Ofendido”?!
“Fatigado?!” Mas como poderia o homem, assumindo atitude de rebelião, isto é, não se deixando quebrantar (como se possível isso fosse, calvinisticamente falando), “conduzir
Deus à fadiga”, se somos todos, em todos os nosso pensamentos, ações e
omissões, inarredavelmente dirigidos por Ele próprio, quer para o bem, quer
para o mal? Esta, a
propósito, é a centralidade da tese doutrinária do citado escritor, estampada
na definição que ele mesmo alinhava como sendo predestinação:
"...Chamamos predestinação o eterno decreto de
Deus pelo qual houve por bem determinar o que acerca
de cada homem quis que acontecesse. Pois ele não quis criar a todos em igual condição; ao contrário, preordenou
a uns a vida eterna; a outros, a condenação eterna. Portanto, como cada um
foi criado para um ou outro desses
dois destinos, assim dizemos que um foi predestinado ou para a vida, ou
para a morte."
“O homem
celerado”(!?) não fora assim, exatamente assim,
criado por Deus, não fora assim direcionado por Deus? Essa sua maneira ímpia ou
celerada de ser certamente NÃO derivou de sua livre escolha ou de seu
arbítrio!!
E que diferença faz se o chamarmos de
ou se o compararmos a “PEDRA DE ARREMESSO” ou “MADEIRA SUSCEPTÍVEL”, se o que
ele se propõe a fazer no curso de sua vida não procede de seu próprio umbigo ou
de seu restrito e finito cérebro?!
O
francês Calvino demonstra o propósito de transmitir ou de “explicar”(sic)
que, mesmo sendo, por Decreto de Deus,
eternamente ímpio, o que de impiedade o homem pratica não o torna semelhante a
uma PEDRA ARREMESSADA, pois que fá-lo com “sensibilidade e vontade” próprias?!
“...Pelo contrário, ages e sofres ação, e
então ages bem, se do bom estás a sofrer a ação.”
Incrível
e inadjetivável essa incursão de Calvino!! Intentar explicar
o inexplicável, intentar reduzir
a “compêndio” ou a “tratado” a imensurável grandeza de Deus, intentar fracionar
ao microscópio do intelecto de meros homens a insondabilidade daquilo que de
Deus não nos é revelado, constitui
ou representa algo como uma invectiva aos cristãos, e uma afronta a Deus.
Tais
coisas são altíssimas e, obviamente, não estão ao alcance de nenhuma
inteligência ou, mais exatamente, de nenhuma “inteligência” humana. A própria Bíblia o diz de
várias maneiras, e esta é uma delas: “Deus é mui grande e nós não o podemos compreender”.
Entre
outras variantes, percebo neste livro chamado “Institutas
da Religião Cristã”, que o autor francês Jean Cauvin parece
ter uma espécie de fixação pelo inexplicável, pelo insondável. Parece
ter predileção por “altos raciocínios”, por demonstrar o
que provavelmente entende como erudição (como
se de erudição a espiritualidade estivesse a depender), na medida simples em que não fala, não se detém nas coisas
INCONTÁVEIS que na Bíblia estão contidas, ditas por Deus, ditas pelos Profetas,
ditas pelo Senhor Jesus, ditas pelos Apóstolos, num diálogo pleno de amor, de
chamamento, de convite, de comiseração em relação ao homem pecador, de lamentos
em relação à morte ou aos desvarios do homem; do cotidiano simples de pessoas
simples, porque simples somos todos em nosso cotidiano, desde Adão, desde Noé,
desde Abraão, desde todos os homens que por Deus criados à sua imagem e
semelhança, feitos pouco menores do que os anjos e coroados de glória e de
honra.
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