Aconteceu
após um culto numa denominação religiosa cristã de orientação chamada
calvinista, isto é, que tem como verdadeiro dogma a íntegra e a literalidade da
vetusta e pouco conhecida Confissão de Fé de Westminster.
Ao
final da reunião solene, uma senhora, vestida sem requintes e com o necessário
recato, de semblante revelando exaustão, aparentando entre cinqüenta e cinco e sessenta
anos de idade, aproximou-se e deteve-se timidamente diante do Pastor que à
porta do templo cumprimentava os irmãos que partiam para suas residências, e
pediu-lhe em voz audivelmente discreta que lhe fossem concedidos alguns minutos
de seu precioso tempo de Ministro do Evangelho, para um aconselhamento em
particular.
Naquele
ritual de despedidas pastorais próximo aos degraus de saída, podia-se perceber
claramente que o Ministro Religioso dedicava a alguns e determinados irmãos
efusivos abraços e largos sorrisos; a outros, um ligeiro aperto de mãos e apenas
uma expressão algo amenizada; e ainda a outros mais, um levíssimo tocar de mãos
com fisionomia algo sisuda ou de pouco ou nenhum entusiasmo.
Dizendo-se
um tanto compromissado com sua agenda, o Pastor, em apressadas palavras, respondeu àquela senhora (irmã em Cristo) que
naquele dia ou momento estaria impossibilitado de atendê-la, e sugeriu que ela
entrasse em contato com sua secretária para que esta verificasse
disponibilidade e marcasse dia e horário para o desejado aconselhamento
pastoral.
Passados
alguns dias, e não sem repetidas e frustradas tentativas de avistar-se com a
referida secretária, após telefonemas não atendidos, eis que finalmente aquela
senhora obteve a aquiescência e a benevolência dessa serviçal do Ministro
Religioso, a qual agendou para uma segunda-feira, às dez horas e trinta minutos
da manhã.
Necessário
o registro de que aquela mulher, embora assídua frequentadora das reuniões
solenes, jamais fora contemplada com uma visita Pastoral ou de qualquer dos
Presbíteros, ou mesmo de qualquer dos irmãos que como ela e com ela ali se
reuniam com o presumível propósito de
honrar o nome do Cordeiro de Deus que Tira o Pecado do Mundo, mesmo não lhes
sendo desconhecidos os graves problemas familiares por ela enfrentados desde
longa data.
Chegado
o dia e momento, eis que aquela senhora, pontualmente, aciona a campainha do
portão que dava acesso ao escritório pastoral e, após alguns segundos, fora convidada
a entrar, sentar-se num confortável sofá estacionado em um dos cantos de uma espécie
de antessala e aguardar que a chamassem.
Finalmente,
ao soar do chamado da secretária, vendo-se frente a frente e a sós com o
Ministro Religioso, a àquela altura também tímida e frágil senhora pôs-se a
narrar-lhe seus terríveis dramas familiares, que consistiam no estilo de vida
do único filho que àquela época contava dezenove anos e que desde pouca idade,
ainda antes de completados dez anos, já se mostrava inveteradamente
desobediente ao pai e à mãe, além de vez por outra aparecer em casa portando
objetos que, perceptivelmente, não lhe pertenciam e, portanto, eram produtos de
furtos.
Com
o passar dos anos, e não obstante todos os esforços daquela dedicada mãe,
embora os conselhos e ensinamentos bíblicos que ela insistentemente tentava
incutir na mente e no coração de seu filho, as coisas simplesmente pioravam,
eis que, de um lado, seu marido não demonstrava qualquer preocupação em relação
ao comportamento do filho, optando por dedicar-se a rotineiras bebedices, por
efeito das quais normalmente chegava a casa em estado de embriaguez, após o dia
de trabalho.
De
pequenos furtos, seu filho passou a envolver-se em brigas de rua, afeiçoou-se
ao uso de drogas como maconha, cocaína e crack, além de se entregar a hábito
arraigado da bebida, tal qual o pai. Todo esse conjunto de comportamentos deu
causa a vários episódios policiais, várias prisões, várias visitas que a mãe
lhe fazia durante seu encarceramento, sempre levada pelo sentimento de mãe e
pelo zelo de uma alma verdadeiramente cristã.
Malgrado
todo o seu desprendimento materno, aquele filho simplesmente não dava sinais de
qualquer desejo de mudança de rumo e, bem ao contrário, passou a freqüentemente
agredir a mãe com palavras de baixo calão e, não raro, tratando-a acintosamente
aos empurrões e fazendo-lhe ameaças.
A
essa altura, o pai, provavelmente como decorrência e efeito do vício da bebida
alcoólica, contraiu grave enfermidade que o impossibilitava de trabalhar,
passando a família a contar com o chamado Auxílio-Doença da Previdência Social,
e, já com pouca capacidade de locomoção, necessitando de cuidados diários em
sua própria cama.
Tentando
ser mais sucinta em sua narrativa ao Ministro Religioso, aquela mulher atalhou
dizendo de sua extrema exaustão física e psicológica, de sua profunda tristeza,
sem ninguém da própria família a quem pudesse recorrer, com o marido
praticamente inválido, e sentindo-se em perigo inclusive da sua própria vida,
considerando que o filho se mostrava a cada dia mais propenso a violentas
agressões, além de simplesmente ignorar por completo o pai que se encontrava
prostrado no leito de enfermidade.
Posicionada
em frente à luxuosa mesa do Pastor, o qual aparentemente a escutava, ora lançando-lhe
rápidas olhadelas, ora remexendo em papéis sobre sua mesa, ora fazendo
anotações particulares, ora interrompendo a conversa para atender pessoas ao
telefone, ora aparteados pela própria e atabalhoada secretária que irrompia gabinete
adentro interrompendo grosseiramente a narrativa, seja para dirigir ao Ministro
futilidades verbais quaisquer, ou para perguntar-lhe algo, ou para transmitir
recados de sua esposa ou enviados por algum membro ou oficial que desejava estar
pessoalmente com ele, a humilde e abatida mulher cristã passou a expor ao
Ministro Religioso, com palavras muito simples, dificultosas em razão da pouca
instrução, a finalidade primordial de sua busca por aconselhamento, culminando
por pedir, já sem conter o fluir de grossas lágrimas, que o Pastor a orientasse
sobre o que deveria urgentemente fazer ou sobre que atitude não menos urgente tomar
em relação ao filho e ao próprio marido, pois que, enquanto aquele se dedicava
exclusivamente à prática de crimes os mais variados e a agressões verbais e
físicas contra sua mãe, o pai, assim como o filho, invariavelmente se recusaram
e jamais quiseram nem mesmo ouvir a respeito do Evangelho.
E,
procurando enxugar as lágrimas com as mangas de seu castigado vestido, aquela
respeitável mulher cristã rogou instantemente ao Pastor que ele, como Homem de
Deus, fosse até sua casa e conversasse com seu marido e com seu filho, e lá lhes
expusesse a Palavra Santa, lhes mostrasse o caminho da Cruz de Cristo, orasse
por eles, na firme confiança e esperança
de que ambos se mostrassem sensibilizados e pudessem ser tocados pelo Espírito
de Deus e, arrependendo-se de seus pecados, receber a vida eterna pela salvação
prometida pelo Senhor Jesus.
Silenciando-se
aquela mulher por curto tempo e com olhos nele fixos, o Ministro Religioso,
parecendo despertar de sua não disfarçada indiferença, deu início ao “aconselhamento”
e, em sucintas e apressadas palavras,
disse:
-
Qual é mesmo o nome da
irmã?
-
Esmeralda, Pastor.
- Veja bem, continuou o Ministro
Religioso - vestido com elegante
paletó, camisa de tecido fino, cabelos bem penteados, impecavelmente barbeado,
anel de grau no dedo indicando formação universitária ou algo símile. Dizia
ele: Deus é absolutamente
soberano em suas decisões e todas as coisas se encontram sob seu controle, de
tal forma que nada há que possamos fazer para alterar os Eternos Decretos de
Deus.
- Não sei se a senhora me
entende, mas expressando de outra maneira, as pessoas já nascem salvas ou
condenadas.
Na verdade, antes mesmo de nascerem já têm seu destino definitivamente traçado
por Deus. Significa que tanto seu filho quanto seu marido ou são salvos ou são
condenados para a perdição eterna, de modo que orações
nesse sentido não surtem nenhum efeito, compreende?
- Nem eu, como Pastor, nem qualquer outro
homem, poderia dirigir orações a Deus suplicando-lhe pela salvação de seu filho
ou de seu marido, porque, como eu disse, e segundo o que na Bíblia se contém,
na irretocável e perfeita interpretação do inigualável doutrinador João
Calvino, e também conforme nossa Confissão de Fé de Westminster, Deus elegeu ou predestinou certas e
determinadas pessoas para serem salvas, antes mesmo que o mundo existisse; e
preordenou todo o restante para a condenação eterna. Portanto, nós de nenhum
modo podemos alterar a Eleição de Deus, ou seja, não há oração que produza esse
efeito, porque Deus não muda seu eterno propósito.
- Se seu filho estiver entre os Eleitos
de Deus, a qualquer momento da vida ele será despertado e transformado, assim
como seu marido. E se, ao contrário, eles não tiverem
lugar entre os Eleitos, permanecerão nesse estilo de vida até à morte e definitivamente
estarão separados de Deus, eternamente condenados.
- Mas, Pastor,
balbuciou chorosamente a mulher cristã, o Senhor Jesus prometeu tantas vezes na Bíblia que a
salvação está ao alcance de todo aquele que crer. Ele mesmo disse:
“Vinde
a mim todos os que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei”.
Já li repetidas vezes
aquela passagem do Evangelho de João, capítulo 3, versículo 16, que diz:
“Porque
Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo
aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.
- Por favor, implore a Deus que abra uma
exceção e inclua meu filho e meu marido entre os Eleitos ou que por piedade
apresse essa Eleição ou a manifestação dela na vida de meu filho e de meu
marido, porque a Bíblia diz que Deus é Amor, Deus é Misericórdia, Deus é
compassivo, Deus não lança fora os que o buscam de todo o coração, Deus quer
que todos se salvem. É o que leio fervorosamente na Bíblia e é o que consola
meu coração durante minhas incessantes orações, Pastor!!
- Lamento, irmã ... ”Geralda”, não é
isso?.
- Não, Pastor, meu nome é Esmeralda.
- Pois é, irmã Esmeralda, essas passagens bíblicas que a
senhora menciona são realmente muito bonitas, mas a interpretação delas é que
não está correta,
como eu expliquei anteriormente. Em suma, a oração para conversão de almas é
ineficaz, é inútil, é perda de tempo, compreende?
- Mas, Pastor, eu frequento esta Igreja
há anos e sempre gostei muito de ouvir seus sermões e presenciei com olhos e
ouvidos muitas vezes o senhor dizer em altos brados para as pessoas se
colocarem aos pés da Cruz de Cristo, para O aceitarem como Senhor e Salvador,
receberem o perdão de seus pecados e passarem da morte para a vida.
- O senhor mesmo disse isso inúmeras
vezes, Pastor! E muitas pessoas, após o seu apelo pela conversão, iam até à
frente, declaravam diante de toda a congregação que aceitavam o Plano de
Salvação do Senhor Jesus e o Pastor, então, orava por elas e dava graças aos
céus por mais essas almas que passavam a integrar o aprisco de Deus!!
- Sim, irmã, mas isso é uma obrigação
minha como Ministro Religioso, ou seja, pregar o Evangelho e elevar orações a
Deus porque não sabemos quem está entre os Eleitos e quem não está.
- Bem, Pastor, então o
senhor admite que tanto pode pregar quanto orar pela salvação de pessoas, considerando que desconhece quem são os
escolhidos e quem são os rejeitados. Então, o que o impede
de ir até minha casa e orar pela salvação de meu filho e de meu marido?!
- Aliás, eu gostaria que o senhor orasse
também pela cura física de meu marido, que tem uma doença grave e já quase não
anda mais. Oração pela cura de enfermidades seria diferente de oração pela
conversão, é isso? Eu até me lembro da passagem de Tiago 5, versículos 14 e 15,
onde lemos: “Está
alguém entre vós doente? Chame os presbíteros da igreja, e orem sobre ele,
ungindo-o com azeite em nome do Senhor; e a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará; e, se
houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados”.
- Pelo amor de Deus, Pastor, eu peço
encarecidamente ao senhor que vá até minha casa, e ore por todos nós, porque
minha vida está uma tragédia, meu marido pode falecer a qualquer instante, meu
filho pode ser assassinado e eu mesma corro o risco de ser morta pelo meu
filho, já que ele, quando está alcoolizado ou drogado, fica irreconhecível,
parecendo até possesso!!
De
repente, a porta se abre e, novamente com o mesmo grotesco espalhafato, entra a
saracoteante secretária do Pastor para, sem qualquer constrangimento e
demonstrando lamentável falta de educação cristã, interromper a fala daquela
mulher e dizer ao Ministro Religioso que determinada pessoa, a quem identificou
como sendo Dr. Fausto Rúbio, acabara de chegar e gostaria de vê-lo, ao que o
Pastor efusivamente respondeu assertivamente e, já ajeitando o elegante paletó,
preparando-se para erguer-se da cadeira, como se aquela mulher ali não mais
estivesse, diz à secretária: -
Perfeitamente, é um prazer, vou recepcionar o Dr. Fausto agora mesmo. Prepare
um café com biscoitos e sucos.
Ato
contínuo, percebendo que a deprimida
senhora, visivelmente embaraçada, permanecia sentada na cadeira, disse-lhe: Irmã
Geralda, nosso tempo terminou, a senhora nos dê licença. Deus a abençoe.
Envergonhada,
profundamente decepcionada e com a alma agravadamente mais dolorida, ainda teve
motivação e forças para relembrar ao (supostamente) Homem de Deus que seu nome
não era “Geralda”, mas Esmeralda.
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